A Semana de Arte Moderna de 1922, comemora em fevereiro, o centenário de sua edição.
Um dos eventos mais significativos para a cultura nacional, responsável pela mudança de paradigmas e por profundas transformações. O que você sabe sobre este evento tão importante na história da arte brasileira?
Antes de mais nada é importante dizer que por mais que o evento tenha durado somente 5 dias, e que muitos de seus participantes tenham seguido caminhos distintos, o legado artístico deixado é imensurável. Realmente é muito difícil seguir uma trilha onde consigamos traçar agora, em 2022, tudo que há de inspiração ou continuação das ideias de 1922, de tanto que há ainda frutos oriundos daquela manifestação.
Só pra vocês verem o tamanho do passeio, nomes como Vinicius de Moraes e Tom Jobim foram diretamente influenciados por poetas como: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Minotti Del Picchia e músicos como Heitor VIlla Lobo, ou a pianista Guiomar Novaes. E se Tom e Vinicius foram influenciados pelos mestres modernistas, por outro lado eles mesmos influenciaram outros: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Menescal, Jorge Ben Jor, Elza Soares e que hoje são a bases para músicos como: Djonga, Criollo, Anitta, Glória Groove, etc… Ou seja, foi um século de rompimento com o academicismo conservador para chegar hoje em uma arte irreverente, politizada, questionadora. Seria ofensivo não mencionar de maneira clara, que o samba crescendo em paralelo com as ideias modernistas também vai influenciar todos esses artistas, a começar pelo próprio Villa Lobos, que buscou no ritmo batucado o que era preciso para seus novos arranjos.
Vamos analisar o contexto:
Para compreendermos um pouco o contexto, a história da arte é melhor assimilada pelo o que chamamos de “Escolas Artísticas”. Trovadorismo, Renascimento, Barroco, Arcadismo, Realismo e Parnasianismo foram algumas dessas vertentes que surgiram na Europa e que definiram parâmetros culturais a serem seguidos. No Brasil, boa parte dessas estéticas e temas foram, a princípio, copiadas com tentativas de exatidão, ou reaproveitadas dentro das características brasileiras, o que acabou as deixando de diversas maneiras idiossincráticas, ou seja, peculiares nem sempre no bom sentido.
É portanto com a chegada, ao fim do século XIX, das Vanguardas Européias, que começamos a ver que a arte brasileira apesar da inspiração nos movimentos do velho mundo, agora tinha também mais do que um toque tupiniquim, mas uma forte veia histórica, cultural, étnica e social do Brasil. Aqui, os vislumbres do Movimento Modernista começam a dar sinais menos tímidos. É a partir de 1912, com a volta de Oswald de Andrade (1890 – 1954) da Europa, depois o lançamento de Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (1917) de Mário de Andrade (1893 – 1945); e o surgimento “agressivo” das artes de Tarsila do Amaral (1886 – 1973), Anita Malfatti (1889 – 1964) e Di Cavalcanti (1897 – 1976) que teremos a base para a organização em 1922 da Semana de Arte Moderna.
Onde aconteceu? Como foi?
Organizada no Teatro Municipal de São Paulo (aliás, fica a dica pra fazer uma visita guiada), como uma série de manifestações culturais que estabeleceram novos caminhos artísticos, novos discursos a criticarem padrões estéticos do século XIX, bem como comportamentos tradicionais que não funcionavam no avanço do diálogo sobre nossa história e cultura, a Semana de Arte Moderna vai marcar o início do Modernismo no Brasil. Quando organizada, sabia-se que haveria uma tremenda resistência da elite agrária e antiquada brasileira, e mais do que isso, o pessoal vaiou demais, além de lançar objetos contra o palco em total reprovação ao que foi apresentado.
Entre as apresentações, a de Heitor Villa Lobos (1887 – 1959) foi talvez a mais curiosa e um tanto irônica. O músico subiu ao palco para se apresentar calçando sapato em um pé, e chinelo em outro por conta de um machucado que não lhe permitia o uso de nada fechado. Porém, o ato foi visto como desrespeitoso, e o músico recebeu as vaias de um público já farto das propostas vanguardistas. Claro que suas apresentações, junto com as de Guiomar Novaes (1894 – 1979) não só marcaram polêmicas, elas também deixaram claro que as ideias modernistas somadas com a cultura brasileira também estavam sendo incorporadas na música.
Por falar nisso, uma das grandes heranças dos líderes modernistas era a incorporação do folclore como tema e/ou inspiração para a composição de obras em literatura, música, artes plásticas e futuramente até a arquitetura se afeiçoa aos detalhes culturais nacionais. Foi esse mote que levou à criação do Movimento Antropofágico.
Aliás, isso aqui é meio diferente. Se liga!
Dentro da cultura ritualística de alguns povos nativos, devorar a carne de outra pessoa faria aquele que come incorporar a força e as habilidades do devorado (sim, literalmente comer outra pessoa). Dentro do Movimento Antropofágico, era usada a alegoria de “devorar”, para “consumir” uma cultura rica e abundante que clamava para ser reconhecida e exposta: a cultura nacional. O “Abaporu”, famoso quadro de Tarsila do Amaral e “Macunaíma”, de Mário de Andrade (participantes e idealizadores da Semana de Arte Moderna); são exemplos de obras inspiradas pela alegoria do Antropofagismo, bem como o lançamento da Revista Antropofágica, que não só faria críticas diretas a artes conservadoras, como também a sociedade e história brasileira.
Para finalizar, quero propor a leitura contemplativa de um poema de Manuel Bandeira (1886 – 1968), declamado por Ronald de Carvalho (1893 – 1935) no dia 15 de fevereiro de 1922 (também muito vaiado). Talvez ele ajude a exemplificar o tipo de críticas feitas pelos modernistas e o porquê que tantos detratores surgiram para odiar as novas ideias apresentadas na Semana da Arte Moderna. Os Sapos foi escrito como crítica aos poetas parnasianos, principalmente Olavo Bilac (1865 – 1918), que preocupados com a estética do poema, esqueceram-se do conteúdo.
Os Sapos
Manuel Bandeira, 1918
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”
Urra o sapo-boi:
– “Meu pai foi rei!”- “Foi!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo”.
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
– “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”.
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio…
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Texto: Caio Terciotti
Edição: Giulia Merolla